sábado, 6 de janeiro de 2007

Vida-Homem Vida-Oceano



Que o oceano é vasto todos sabem. Uma praia não é um pedaço triste dele, pois traz consigo apenas restos de água, sobra de algas, peixes muito pequenos e saudade.
Onde o oceano morre – a praia - é o lugar em que as pessoas ficam. As pessoas evitam a morte nos oceanos por isso ficam em sua parte triste, a praia. Não nadam até ele. Não ficam por lá. Não nadam para o fundo. Não se deixam levar pelos cardumes. Sentem náuseas com o perfume do mar.
Vida humana e vida oceânica não são vidas afins, embora ambas sejam vivas. Os humanos que sonham com o oceano e têm medo de morrer no monte de vida que ele oferece, normalmente vivem onde o mar morre, na praia.
É na beirinha que se encontram, festejam, descansam, ali bem no limite entre vida e morte. No lugar, talvez o único, em que a vida-oceano e a vida-homem se encontram, no ponto-pontinho onde não a onda, mas o que sobrou dela chega ao seu limite e se esforça preguiçosamente para ganhar mais alguns centímetros de areia. É nessa disputa que se dá o embate, e o encontro – por isso, entre vida-homem e vida-oceano: bem depois de onde a onda quebra e vai, fingindo-se inocente para a areia.
Há pessoas felizes nesse lugar de disputa entre vidas diferentes. O curioso é que são felizes vendo a imensidão e restringindo-se em um espaço totalmente demarcado. Demarcado para os lados: o fim da praia à direita, o fim da praia à esquerda. Demarcado para cima: o alto daquele monte. Demarcado para abaixo da linha do mar: até a cintura (diz a prudência) ou até o último fio de cabelo de cada um (diz a ousadia). Curioso: o limite entre prudência e ousadia à beira mar é um espaço de corpo que vai do umbigo ao último fio de cabelo, inclusive para os carecas (não vale aqui fazer jus ao umbigo, uma vez que teoricamente umbigo, todos têm).
Isto de cima é um monte de gente feliz vivendo felicidade em um espaço limitado e limítrofe entre vida e morte. Visto de cima é curioso notar que têm total liberdade em um perímetro de aproximadamente 5000 m². Extremamente felizes ficam circunscritos a esta borda, de um lado para o outro, no meio, na diagonal, no solo, para cima. Dentro desta borda há às vezes alguém que trans-borda.
Nesse trans-bordar acabam indo para além dos limites da praia. Vão para um montezinho lá em frente. Sobem nas pedras – escorreram e se cortam às vezes. Avançam no mar e encaram o oceano. Estes, quando fazem isso, correm o risco de trocar uma vida pela outra, ou seja, a vida-homem pode acabar quando se desafia a vida-oceano, mas a sensação vale à pena.
Morrer enquanto homem também não é lá coisa muito interessante, por isso o máximo da vida neste momento de trans-bordamento é curiosamente estar no limite entre as duas vidas (isso só é possível quando se esquece que este é também o limite entre as duas mortes). Ao estar assim no ponto-limite entre vida-homem e vida-oceano provoca em si um outro trans-bordamento, só que dentro da gente. É tanta vida misturada (no caso, duas, mas para a condiçãozinha humana está ótimo) que quase não se cabe em si.
É nesse momento que o homem acha que é Netuno, que é sereia, que flutua, mergulha e não afunda. É nesse, mesmo tão-pouco, trans-bordamento que finalmente se sente (e não se compreende, o que também não tem graça nenhuma) que viver o humano é não se caber de uma vida só.

Tela: A Praia, de Angel Carvalho (clicar no título para acessar página do artista)

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