domingo, 28 de janeiro de 2007

Elogio da Sombra - Jorge Luís Borges


Elogio da sombra
Jorge Luis Borges

A velhice (tal é o nome que os outros lhe dão) pode ser o tempo de nossa felicidade.
O animal morreu ou quase morreu. Restam o homem e sua alma.Vivo entre formas luminosas e vagas que não são ainda a escuridão.
Buenos Aires, que antes se espalhava em subúrbios em direção à planície incessante, voltou a ser La Recoleta, o Retiro, as imprecisas ruas do Oncee as precárias casas velhas que ainda chamamos o Sul.
Sempre em minha vida foram demasiadas as coisas; Demócrito de Abdera arrancou os próprios olhos para pensar; o tempo foi meu Demócrito. Esta penumbra é lenta e não dói; flui por um manso declive e se parece à eternidade.
Meus amigos não têm rosto, as mulheres são aquilo que foram há tantos anos, as esquinas podem ser outras, não há letras nas páginas dos livros.Tudo isso deveria atemorizar-me, mas é um deleite, um retorno.
Das gerações dos textos que há na terra só terei lido uns poucos, os que continuo lendo na memória, lendo e transformando. Do Sul, do Leste, do Oeste, do Norteconvergem os caminhos que me trouxerama meu secreto centro. Esses caminhos foram ecos e passos, mulheres, homens, agonias, ressurreições, dias e noites, entressonhos e sonhos, cada ínfimo instante do ontem e dos ontens do mundo, a firme espada do dinamarquês e a lua do persa, os atos dos mortos, o compartilhado amor, as palavras, Emerson e a neve e tantas coisas.
Agora posso esquecê-las. Chego a meu centro, a minha álgebra e minha chave, a meu espelho.
Breve saberei quem sou.

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